O ser animal, em questão

Em tempos de crise ainda mais expostos se encontram os elos mais fracos. Expostos à sua própria sorte ou à falta dela e por consequência à contingência última da ajuda externa como factor de sobrevivência, e em dignidade. Cabe a nós, mesmo nas circunstâncias humanas actuais, finalmente refletir sobre a premente necessidade de apelar, sem preconceitos, a uma lei que regule e assim proteja também o que não é humano e cuja vida em crise é muitas vezes um estado permanente. E mesmo porque todos somos uma globalidade cujo bem estar depende de um mais perfeito intercâmbio de bons valores.

A vida quer-se natural em todas as suas vertentes, sempre. O respeito que a existência dessa naturalidade chama para si é inerente à da sua realidade. Que se saiba, a humanidade ainda prefere respeitá-la, respeitar cada parte dessa realidade e respeitá-la no seu estado puro, primordial, íntegro. O ser vivo quer-se assim livre, naturalmente. Quer-se assim respeitado no natural domínio daquilo que é, como ser.

Ora vivemos tempos cada vez mais complicados, confusos, excelentes viveiros para que múltiplos agentes coercivos modifiquem, num imperativo de poder, sem contemplações e sem grandes razões, tudo o que pode ser produto, incluindo tudo o que “mexe” e tudo o que simplesmente se come e se usa e abusa, como o simples alimento vegetativo cuja mobilidade inconsciente já não é geneticamente o que era.

Um tipo de globalização errática, que se apresenta transversal a qualquer sociedade, a qualquer política, a qualquer estado de coisas, essas “coisas” sendo sempre tratadas, manipuladas enfim, da mesma forma.

Sendo assim, qualquer produto vendido como seguro torna-se afinal nada mais do que uma espécie de sucedâneo do natural que o planeta primariamente nos oferece, e isso já não é natural, ou pelo menos não é natural que a liberalização da doutrina do consumismo inclusive o da democratização de ideias erradas perpétue tal estado de coisas.

Ora, contrariamente a um vegetal, um animal não sai da terra, não brota como um caule de uma superfície una e inconsciente, como que uniforme e insensível, mas sim gera-se, na quase totalidade dos casos que aqui importam, e tal como o homem, de uma dualidade de outros seres vivos, sencientes, portanto sensíveis, com linguagens próprias, com identidades mais diferenciadas do que a maioria dos humanos crê e com uma dignidade a preservar.

O comum engano respeitante ao significado do que é o ser animal resulta sempre no comprometimento da imparcialidade de tratamento entre o ser humano e esse outro ser, no comprometer da condição primeira e portanto essencial para que a tal naturalidade possa ter viabilidade e assim não se incorra no erro da supremacia de uns sobre os demais.

A verdade é únicamente que a validação da consciência por palavras é, pelo pouco que ainda se sabe, humana, enquanto que no animal, destituído do verbo tal como o conhecemos e não podendo comunicar com o homem, a “linguagem” não consegue pelo factor referido antes provar-se a si própria e aos outros como inteligível.

Assim sendo e no respeito pela dignificação do mais fraco, o animal carece e merece uma legislação apropriada. Até porque se a isso não tivesse direito seria como destituir-se o próprio homem do seu próprio direito de conviver com outros que não os da sua espécie, seria excluir-mo-nos do que nos rodeia, pois sem uma legislação abrangente a todos os seres vivos e a todas as circunstâncias não será possível uma realidade válida e global e uma sociedade não se consegue auto-regular sem organização legislativa.

Pela constatação do monopólio exercido sobre tudo o que diz respeito ao animal pelo homem incluindo a destituição pelo primeiro da experiência de uma plena existência ao segundo, ter-se-á forçosamente de questionar a ausência de leis que defendam estes últimos. E enquanto a famosa “evidência” da supremacia humana continuar perenemente a condenar os animais a um cumprimento de pena efectiva pelo simples crime de existirem, assim nossa própria existência, em inconsciência ou não, estará não muito longe pelo menos da cumplicidade num crime de abuso ou mesmo de homícidio sem justa causa.

Texto de Diana Loureiro – actriz e escritora

Fonte: Jornal Público – 07-02-2013

Fotografia: Animal Equality

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